Eu lembro... Foi na madrugada de 8
de julho de 1983 e eu tinha 7 anos, no interior de Santa Cruz do Timbó. Era madrugada; a chuva não
parava há uns cinco dias, acompanhada de trovoadas medonhas. Acordei com vozes
lá fora, e uma luz estranha e forte entrava pela janela. No mesmo quarto
dormiam também meu irmão e minha irmã mais velhos. Chega a ser assustador como a memória da gente, ainda
criança, se prende a tantos detalhes.
Batidas fortes e um som surdo vinham de
fora – e uma voz chamava pelo nome de meu pai. Olhamos pela janela, assustados.
Eram dois vizinhos dentro de um bote. Eles estavam na água, praticamente em frente à janela
do quarto, com uma lamparina a querosene nas mãos. O barulho surdo vinha dos
remos que batiam nas laterais do bote. E o vizinho gritava: “Levantem, rápido! Á água tá
subindo!”
O Rio Timbó ficava longe – e agora
estava ali, debaixo da nossa casa?! Saímos do quarto. Lá fora, o clarão dos relâmpagos
permitia ver que a estrebaria já estava cheia de água; as vacas com água pela
barriga. E chovia sem parar. O sino da igreja batia, ao longe, para acordar as
pessoas.
A correnteza da lembrança me leva para o dia seguinte, que já estava claro: a água subia minuto a minuto, já quase entrando dentro de casa; as trovoadas ficavam ecoando entre os morros por um longo tempo. Os porcos nadando para fora do chiqueiro, fugindo... E os vizinhos ajudando a carregar os móveis para fora de casa. O fogão a lenha foi apoiado sobre muitos tijolos. Mais tarde, quando a água subiu mais, foi levado dali também. Chovia, trovoava, os morros vindo abaixo, deixando atrás de si um rastro de terra vermelha, que manchava o verde-escuro da floresta de araucárias. E todas as pessoas meio desnorteadas, descrentes daquilo que viam e ouviam.
Não demorou muito e a água chegou até a janela
de casa. Não perdemos móveis – que já eram poucos e simples. Chovia ainda e, a
cada trovoada, os morros continuavam a desbarrancar. E isso se seguiu por dias. Depois, semanas.
Hoje volto ao baú de imagens que ficaram guardadas dentro de mim,
já há mais de trinta anos: fomos morar com meu tio; meu irmão e eu nadando dentro de
casa; os novos caminhos que foram abertos pelo meio do mato para chegar até os
vizinhos, já que a estrada estava coberta pela água. Não havia luz elétrica,
nem telefone, nada. O rádio trazia algumas notícias, quando havia pilhas para que funcionasse. À noite, só a luz fraca de um lampião a querosene.
O único
meio de transporte eram os botes, muitos deles. De vez em quando, passava uma lancha a motor pelo alagado, que buscava os porcos que o vizinho havia carneado para atender a cidade de Porto União. Naqueles dias, a gente comia muito peixe. E havia muito queijo, muita
beirada de queijo recém tirado da forma, havia muito requeijão, muita sopa de
leite. Até os cães e gatos ganhavam leite à vontade (que festa!); as vacas apertadas num
canto do potreiro, onde não havia água da enchente. A nossa escola com água pela janela – muitas casas também. A moça do
posto de saúde visitava as famílias e distribuía frascos de cloro para
tornar a água potável. Água não faltava.
Semanas depois, um susto. Um barulho muito
forte vinha do alto. Nós, crianças, ficamos apavoradas ao ver um helicóptero voando
baixo e se aproximando de lado, em direção à nossa casa. Minha irmã saiu
correndo. Ele pousou ao lado da estrebaria – para nós, claro, era como um disco voador.
Deixaram meio saco de arroz descascado, para ser repartido também com os
vizinhos.
Na vila, perto de onde morávamos, havia uma
fila longa de pessoas para receberem doações (doações que vieram de todo o país e até de
fora dele – mas isso eu só sei nos dias de hoje). Minha mãe foi só uma vez lá; eu fui junto.
Pela primeira vez na vida eu vi açúcar cristal. Fora isso, ganhamos uma sacola
com roupas usadas. Hoje em dia, acho engraçado quando lembro: havia uma
sandália de cor laranja, com cadarços de uns dois metros, ao estilo dos anos 70 –
minha irmã se negou a usar. E tinha, ainda, um casaco branco de capuz, que foi dado para meu irmão e, anos depois, para mim. Lembro que, no depósito de
doações para os flagelados, havia muitas caixas de camisas novas. Mas essas não nos vestiram.
Naqueles
dias, fui com minha mãe visitar uma outra família da vila, que nem teve a
casa atingida pela água. Eles almoçavam arroz e salsicha (lembrança boba, eu sei...). Foi a primeira vez na
vida que vi salsicha, muitas latas delas sobre a pia - e fiquei impressionado
com aquilo. Lá em casa não recebemos nada disso. Só um pacote de açúcar cristal
e arroz. Pelo menos isso.
A enchente de 1983 foi um drama comunitário e, ao mesmo tempo, solitário e solidário. De nosso isolamento, na vila de Santa Cruz do Timbó, pouco ouvimos sobre as cidades ao redor, que também sofriam com as águas. E, da mesma forma, tenho a impressão de que pouca gente sabia da nossa existência e da nossa situação. Parece que o Brasil inteiro olhava para nós - e não tínhamos nem ideia disso. Depois, ninguém mais olhou, por muitos anos. Sempre de novo reféns de um rio.
Ás águas baixaram muitas semanas depois. O povo se reergueu, em Santa Cruz, em Porto União da Vitória e tantos outros lugares. Para trás, ficaram a lama e as marcas da água suja. Essas marcas estão, até hoje, gravadas no coração de quem vivenciou aqueles dias. E, toda vez que uma trovoada ecoa entre os morros, parece que a memória desenterra mais alguma lembrança.