9 de julho de 2013

Do baú de 1983



Eu lembro... Foi na madrugada de 8 de julho de 1983 e eu tinha 7 anos, no interior de Santa Cruz do Timbó. Era madrugada; a chuva não parava há uns cinco dias, acompanhada de trovoadas medonhas. Acordei com vozes lá fora, e uma luz estranha e forte entrava pela janela. No mesmo quarto dormiam também meu irmão e minha irmã mais velhos. Chega a ser assustador como a memória da gente, ainda criança, se prende a tantos detalhes. 

Batidas fortes e um som surdo vinham de fora – e uma voz chamava pelo nome de meu pai. Olhamos pela janela, assustados. Eram dois vizinhos dentro de um bote. Eles estavam na água, praticamente em frente à janela do quarto, com uma lamparina a querosene nas mãos. O barulho surdo vinha dos remos que batiam nas laterais do bote. E o vizinho gritava: “Levantem, rápido! Á água tá subindo!”

O Rio Timbó ficava longe – e agora estava ali, debaixo da nossa casa?! Saímos do quarto. Lá fora, o clarão dos relâmpagos permitia ver que a estrebaria já estava cheia de água; as vacas com água pela barriga. E chovia sem parar. O sino da igreja batia, ao longe, para acordar as pessoas. 

A correnteza da lembrança me leva para o dia seguinte, que já estava claro: a água subia minuto a minuto, já quase entrando dentro de casa; as trovoadas ficavam ecoando entre os morros por um longo tempo. Os porcos nadando para fora do chiqueiro, fugindo... E os vizinhos ajudando a carregar os móveis para fora de casa. O fogão a lenha foi apoiado sobre muitos tijolos. Mais tarde, quando a água subiu mais, foi levado dali também. Chovia, trovoava, os morros vindo abaixo, deixando atrás de si um rastro de terra vermelha, que manchava o verde-escuro da floresta de araucárias. E todas as pessoas meio desnorteadas, descrentes daquilo que viam e ouviam.


Não demorou muito e a água chegou até a janela de casa. Não perdemos móveis – que já eram poucos e simples. Chovia ainda e, a cada trovoada, os morros continuavam a desbarrancar. E isso se seguiu por dias. Depois, semanas. 

Hoje volto ao baú de imagens que ficaram guardadas dentro de mim, já há mais de trinta anos: fomos morar com meu tio; meu irmão e eu nadando dentro de casa; os novos caminhos que foram abertos pelo meio do mato para chegar até os vizinhos, já que a estrada estava coberta pela água. Não havia luz elétrica, nem telefone, nada. O rádio trazia algumas notícias, quando havia pilhas para que funcionasse. À noite, só a luz fraca de um lampião a querosene. 
O único meio de transporte eram os botes, muitos deles. De vez em quando, passava uma lancha a motor pelo alagado, que buscava os porcos que o vizinho havia carneado para atender a cidade de Porto União. Naqueles dias, a gente comia muito peixe. E havia muito queijo, muita beirada de queijo recém tirado da forma, havia muito requeijão, muita sopa de leite. Até os cães e gatos ganhavam leite à vontade (que festa!); as vacas apertadas num canto do potreiro, onde não havia água da enchente.  A nossa escola com água pela janela – muitas casas também. A moça do posto de saúde visitava as famílias e distribuía frascos de cloro para tornar a água potável. Água não faltava.

 
Semanas depois, um susto. Um barulho muito forte vinha do alto. Nós, crianças, ficamos apavoradas ao ver um helicóptero voando baixo e se aproximando de lado, em direção à nossa casa. Minha irmã saiu correndo. Ele pousou ao lado da estrebaria – para nós, claro, era como um disco voador. Deixaram meio saco de arroz descascado, para ser repartido também com os vizinhos.


Na vila, perto de onde morávamos, havia uma fila longa de pessoas para receberem doações (doações que vieram de todo o país e até de fora dele – mas isso eu só sei nos dias de hoje).  Minha mãe foi só uma vez lá; eu fui junto. Pela primeira vez na vida eu vi açúcar cristal. Fora isso, ganhamos uma sacola com roupas usadas. Hoje em dia, acho engraçado quando lembro: havia uma sandália de cor laranja, com cadarços de uns dois metros, ao estilo dos anos 70 – minha irmã se negou a usar. E tinha, ainda, um casaco branco de capuz, que foi dado para meu irmão e, anos depois, para mim. Lembro que, no depósito de doações para os flagelados, havia muitas caixas de camisas novas. Mas essas não nos vestiram. 

Naqueles dias, fui com minha mãe visitar uma outra família da vila, que nem teve a casa atingida pela água. Eles almoçavam arroz e salsicha (lembrança boba, eu sei...). Foi a primeira vez na vida que vi salsicha, muitas latas delas sobre a pia - e fiquei impressionado com aquilo. Lá em casa não recebemos nada disso. Só um pacote de açúcar cristal e arroz. Pelo menos isso.
 
A enchente de 1983 foi um drama comunitário e, ao mesmo tempo, solitário e solidário. De nosso isolamento, na vila de Santa Cruz do Timbó, pouco ouvimos sobre as cidades ao redor, que também sofriam com as águas. E, da mesma forma, tenho a impressão de que pouca gente sabia da nossa existência e da nossa situação. Parece que o Brasil inteiro olhava para nós - e não tínhamos nem ideia disso. Depois, ninguém mais olhou, por muitos anos. Sempre de novo reféns de um rio.

Ás águas baixaram muitas semanas depois. O povo se reergueu, em Santa Cruz, em Porto União da Vitória e tantos outros lugares. Para trás, ficaram a lama e as marcas da água suja. Essas marcas estão, até hoje, gravadas no coração de quem vivenciou aqueles dias. E, toda vez que uma trovoada ecoa entre os morros, parece que a memória desenterra mais alguma lembrança.

10 de abril de 2013

Voltando para casa...



Fim de tarde. Ônibus abafado e pessoas se aglomerando ainda mais. Trabalhadores exaustos e suados, estudantes carregados de papeis, uma mãe equilibrando sua criança de colo no vai-vem do corredor, duas adolescentes rindo alto, um senhor idoso com dificuldade para subir a escada do veículo, o cobrador impaciente: "Um passinho à frente, pessoal!"


No ônibus, mesmo que não se tenha intenção, é impossível não ouvir o que as pessoas conversam. Não há espaço nem para a discrição.
Foi aí que percebi que uma moça, no assento atrás de mim, falava ao celular. Não sei com quem ela conversava, mas estava animada e disse: "Tô voltando pra casa!" E essa frase, ouvida sem querer, ficou acelerando nas curvas do meu pensamento. A moça vinha não sei de onde e estava voltando para casa. Será que ela se dava conta do privilégio que isso significa? Passei a arquitetar hipóteses: ela devia estar falando com a mãe, que a esperava com o jantar pronto. Ou com o pai, com quem ela tomaria chimarrão à tardinha. Ou com o namorado, com quem fazia planos de casamento. Ou, quem sabe, ela falava com o filho pequeno, que pedia auxílio na lição de casa. Não importa. A moça voltava para casa.


Eu, no ônibus lotado, era como se estivesse dentro de uma vitrine em movimento. Lá fora, numa calçada de nossa cidade, uma pessoa solitária revirava uma lixeira. Buscava comida? Alguns metros adiante, uma criança descalça e sozinha estendia a mão ao motorista parado na sinaleira. Muitas pessoas nas ruas, rostos sérios e passos apressados. No assento, atrás de mim, a moça que voltava para casa, feliz.


Voltar para casa, para a família, para junto de quem se quer bem, é um privilégio da maioria das pessoas, mas não de todas. Há muitas que voltam, todos os dias, para lares desestruturados, para relacionamentos ressecados, para a solidão fria de suas casas. Mesmo convivendo com outras pessoas, sob o mesmo teto, são estranhas entre si. Não há diálogo, só monólogos. Não há partilha, só egoísmo faminto. Não há sorrisos, nem gentilezas; só reclamações e palavras duras. Não há pontes, apenas muros cada vez mais altos. Mães e pais sem tempo para os filhos. E filhos ditadores, ingratos. Avós que não têm para quem contar suas histórias. Resignados, vivem presos ao passado, em que as famílias numerosas ainda se reuniam, pelo menos para o farto almoço de domingo, quando se alimentava o corpo e o coração. 

Voltar para casa, voltar para a família todos os dias deveria ser sempre motivo de alegria, como o era para a moça que falava ao celular, com um sorriso na voz. Ou como na parábola de Jesus, que fala do retomo do filho perdido para os braços de seu pai bondoso. Família, casa, lar deveriam ser sempre sinônimos de aconchego, de partilha, de proteção. E isso apesar das diferenças, já que, mesmo na família, as pessoas são únicas, felizmente. 

Pela janela do ônibus, vi ainda um joão-de-barro no topo de um poste, engenhando sua morada, faceiro. Até ele! Então me dei conta do privilégio que é, também para mim, poder dizer: Eu estou voltando para casa!


3 de janeiro de 2012

Achados & perdidos (I)


Achados & perdidos (I)

Hoje achei no supermercado, perdido entre seus "concorrentes" Noeis, um "São Nicolau" de chocolate, com direito a chapéu de bispo e Bíblia a tiracolo. Nicolau, patrono das crianças e considerado por muitos como o "verdadeiro Papai Noel", viveu na Turquia, no século IV, e morreu num certo 6 de dezembro.
Mas, ainda no final do século XX, em todo 6 de dezembro de minha infância, ele costumava deixar algum doce dentro de meu sapato, colocado na janela (e eu lá me importava que Nicolau fosse católico? :-).

Ainda há alguns dias, eu me dei conta de que nunca tive tantos pares de calçados como tenho atualmente. Mas, de que me servem, se não coloquei nenhum deles na janela?
Pois é... talvez a gente deixe de receber muitos "doces" na vida, simplesmente por ter deixado de acreditar que vá recebê-los ou que os mereça. E a gente se fecha, fecha a janela e deixa de esperar. Mas deveria ser aí, ao sentir-se perdido, ao sentir o "sapato apertar", que seria hora de descalçá-lo, colocá-lo na janela e, na esperançosa espera dessa época natalina, encontrar algo de bom e simples com o que se alegrar. E, então, após calçar novamente seu sapato - ou descalço mesmo -, seguir adiante.

1 de maio de 2010

Ilha das Flores (I)


O que ainda me surpreende aqui na Alemanha é que a natureza parece ter muito mais "pressa" do que no Brasil. Como o inverno é longo e rigoroso, a chegada da primavera se dá como num passe de mágica: mal a neve some e as flores já "explodem" em cores e formas. Na ilha de Mainau, que visitei recentemente, também é assim. De carro, a viagem a partir de Nürnberg dura quatro horas.

Situada no lago Bodensee, fronteira entre Alemanha, Suíça e Áustria, Mainau é conhecida como "Ilha das Flores" e tem um pouco mais de um quilômetro de comprimento. Como pude conferir, ela faz jus ao apelido: tendo os Alpes como pano de fundo, nesta época florescem por lá 15 mil tulipas e, com a chegada do verão, é a vez das 30 mil roseiras e outro sem-número de flores e plantas exóticas, de todas as partes do mundo. Para isso, além dos jardins e parques ao ar livre, há estufas gigantescas. Numa delas, inclusive, mais de mil borboletas passeiam sobre os turistas.

A ilha é propriedade particular de uma família nobre sueca. A entrada custa cerca de quinze Euros (pouco mais de trinta Reais); há também espaços culturais e gastronômicos. Anualmente, Mainau recebe dois milhões de visitantes. Certamente, cada um deles volta de lá como eu, espantado diante de tanto capricho, tanto por parte da natureza, quanto por parte de quem organiza aquilo tudo. Mainau é um desses lugares em que a câmera fotográfica é imprescindível. Senão, como comprovar aos mais céticos que a gente já pisou no paraíso?

13 de abril de 2010

Políkrates


Hoje eu tenho muito o que fazer. Não sei por onde começar. Na verdade, comecei muitas coisas e não concluí nenhuma; é só olhar minha mesa de trabalho: livros que não guardei, a máquina fotográfica fora do estojo, o calendário ainda com a página do mês passado, um charuto pela metade (viva la revolución!) , uns restos de chocolate, selos comprados para cartões-postais ainda não escritos...
E, nesta semana, ainda tenho prova de grego; a capa amarela do dicionário me alertando aqui do lado (tenho a impressão de que ela logo se tornará vermelha, como um semáforo...). Até agora, todos os mitos gregos que li terminaram em tragédia. Espero que minha nota final seja menos trágica. Para treinar, ali me esperando, o texto que ainda não terminei de traduzir. Por enquanto, só consegui decifrar o título fatídico: "Pode alguém escapar de seu destino?". Pode? Posso tentar, mas, nesse ritmo de meias-coisas, chego apenas até a metade do caminho. Aí a Esfinge me devora.

24 de dezembro de 2009


No Natal de 2009...

Lembro com saudade dos Natais de minha infância, das bolachas enfeitadas com açúcar colorido, do pinheirinho meio murcho, dos enfeites desbotados, muito algodão e cinco ou seis velas acesas, refletindo meus olhos cheios de espanto. O presépio de apenas três peças: José, Maria e o menininho Jesus, com a manjedoura quebrada. O medo meio disfarçado de que aparecesse na janela aquele Papai Noel assustador, de máscara plastificada. Ele nunca vinha e eu mascarava meu desapontamento. O desejo não atendido de receber uma bicicleta Caloi Cross. A nossa família ao redor da mesa, a galinha recheada e o vinho de garrafão (para as crianças,
misturado com água e açúcar). Depois, meu pai tocava gaita, minha mãe abria uma caixa de bombons, onde se escondia apenas um disputado Sonho de Valsa. Um sonho doce, uma valsa no teclado da gaita. E a gente ia dormir feliz.

Sempre gostei dessa época e, até hoje, ouço músicas natalinas durante o ano todo. E gosto de dar presentes sem que seja uma data NATALícia. De alguma forma, o tempo, os rumos e desarrumos da vida, as despedidas sem oportunidade de dizer adeus me mostraram que o essencial do Natal permanece: Deus se fez presente entre as pessoas e, por isso, podemos ser um presente para os outros e eles são um presente para nós. E é necessário,
imprescindível, que essas pessoas fiquem sabendo de sua importância, assim como a Boa Notícia do nascimento se es-palhou (como palha ao vento): não amanhã ou depois, mas agora, enquanto há tempo e voz ou papel ou internet. Hoje, sem o calor do Natal brasileiro, com neve de verdade no lugar do algodão, com muitas lâmpadas no lugar das poucas velas, sem medo de Papai Noel (pena...), co
m bicicleta de várias marchas, sem pai
nem mãe, mas com irmãos, sobrinhos, amigos... de repente me deu vontade de escrever tudo isso para me relembrar de como a vida tem sido generosa comigo, desde sempre, e de que o Natal pode e deve ser celebrado todo dia, pois a vida é presente valioso. Eu só queria passar um pouco disso adiante.

Obrigado pelo presente da sua amizade. Tenha um abençoado Natal! Simples e com essência.

11 de agosto de 2009

ups!


... e no meio da aula, um anjo passou voando sobre minha cabeça. Um anjo de asas barulhentas. Anjos não deveriam atrapalhar os estudos...